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28/02/2021

'Não é hora de pensar só em mim'

A dor de cabeça provocada pelo uso excessivo da máscara N95 muitas vezes se confunde com um dos sintomas da Covid-19, assim como a tontura causada pela desidratação, afinal, a extrema dedicação ao trabalho faz com que ela se esqueça até de beber água. Mesmo visivelmente esgotada, a supervisora do Serviço de Psicologia do Hospital Estadual de Bauru (HEB), referência para o tratamento de pacientes com a doença via Sistema Único de Saúde (SUS) em toda a região, além de docente e coordenadora do curso de Psicologia das Faculdades Integradas de Bauru (FIB), Andréia Barbosa de Lima, 40 anos, não deixa de se dedicar de corpo e alma à profissão que escolheu ainda na adolescência. "Não é hora de pensar só em mim", reforça.

Tamanha resiliência, muito provavelmente, teve origem na infância humilde da psicóloga. Caçula do caminhoneiro aposentado Israel Barbosa de Lima, 69 anos, bem como da secretária aposentada Rachel Cantilho de Lima, de 63, a bauruense cresceu em um Jardim Marambá que não possuía asfalto ou saneamento básico. As dificuldades nunca a impediram de brincar pelas ruas do bairro na companhia dos irmãos André e Altair.

A profissional também atribui a sua força ao apoio da família, incluindo o namorado, o educador físico Cléber Alves, 37 anos, com quem planeja se casar. Hoje, Andréia supervisiona as visitas virtuais aos pacientes com Covid-19 do Hospital Estadual. "Eu já vi famílias inteiras intubadas e sedadas na UTI, mas presenciei recuperações surpreendentes", relata, ressaltando que os altos da profissão a ajudam a superar os baixos.

Abaixo, ela fala sobre as experiências antes de depois da pandemia do novo coronavírus, considerada um divisor de águas na sua vida:

Jornal da Cidade - Você teve contato com a Psicologia Hospitalar quando?

Andréia Barbosa de Lima - Ainda na faculdade, estagiei em uma escola, na clínica da Unisagrado e no DAE. Depois de formada, fui para a área social da Prefeitura de Abatiá, no Paraná, onde trabalhei por um ano. Quando voltei a Bauru, atuei em uma instituição filantrópica chamada Fundação Inácio de Loyola. Em 2008, passei em primeiro lugar em um processo seletivo do Estadual. Antes, a minha avó paterna sofreu um AVC e ficou hospitalizada no HE, momento em que percebi a importância da visitação para os pacientes.

JC - O que mudou na sua rotina com a pandemia do novo coronavírus?

Andréia - Antes da pandemia, a minha rotina já era imprevisível, porque o Estadual atende pacientes mais graves ligados a várias especialidades, como Oncologia, Ambulatório, UTI, Hemodiálise, Unidade Coronariana etc. Mas de março de 2020 para cá, o nosso trabalho se tornou ainda mais impremeditado. No começo, bateu aquele medo em relação à contaminação da minha equipe, formada por nove psicólogos. Depois, apresentei uma proposta de visitas virtuais aos pacientes com Covid-19. Na época, somente dois hospitais da Capital aderiram a tal modalidade.

JC - Você ou alguém da sua família contraiu Covid-19?

Andréia - Eu moro com os meus pais, que são idosos e têm comorbidades. No começo, fiquei dois meses na casa do meu namorado, mas acabei voltando a viver com eles. Até hoje, tenho o meu quarto e o meu banheiro. Não é hora de pensar só em mim, mas na minha família e nos meus pacientes também. Por enquanto, não apresentamos qualquer sintoma. A minha cunhada foi a única de nós a receber o diagnóstico da doença, mas não convivíamos. Mesmo assim, me preocupei bastante, porque vejo o sofrimento dos internados e seus familiares. Por sorte, ela não precisou de hospitalização.

JC - Em que momento o seu trabalho ficou mais desgastante?

Andréia - Desde o início da pandemia, eu estou me dedicando ao máximo e, até hoje, acabo ficando mais tempo do que o previsto na minha carga horária. Não consigo ir embora e deixar de ligar para a família de um paciente grave. E se ele não sobreviver até o dia seguinte? Para mim, o pior momento é o que nós vivemos agora, porque temos uma equipe desgastada física e emocionalmente carecendo de muitos cuidados. Paralelamente, de dezembro para cá, os casos da doença só aumentam.

JC - Quais são as consequências da pandemia para a saúde mental não só dos profissionais da linha de frente, mas da população em geral?

Andréia - Em uma entrevista recente, dois médicos do Albert Einstein, em São Paulo, disseram que precisaram de afastar por esgotamento profissional. Paralelamente, a quarentena trouxe o desemprego e a inclusão de muitas pessoas na situação de vulnerabilidade social. Logo, a Psicologia tem muito a contribuir com tudo isso, principalmente, no pós-pandemia, porque haverá mais gente afetada emocionalmente do que pelo vírus em si. Se o poder público não equipar a sua rede de saúde mental, que já está sobrecarregada, ela corre o risco de colapsar.

JC - Você destacaria alguma história marcante envolvendo os pacientes com Covid-19?

Andréia - Várias histórias mexeram comigo, mas eu gostaria de destacar uma que aconteceu no começo da pandemia. Um homem de 50 e poucos anos foi sedado e intubado. Logo depois, chegaram o pai e a mãe dele na mesma condição. A família estava tão abalada que não conseguia participar das visitas virtuais. No final das contas, só o primeiro internado sobreviveu. Por outro lado, presenciei recuperações surpreendentes. Para me manter forte, recorro sempre às boas notícias e à minha fé em Deus.

JC - Por fim, qual é o seu conselho aos profissionais da linha de frente?

Andréia - Que nós nos apeguemos uns aos outros e nunca, em hipótese alguma, deixemos de nos cuidar no sentido de prevenir a contaminação, bem como de buscar algo que nos dê prazer fora do trabalho.

 



Fonte: JC Net
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